Crítica: Morte e Vida Severina - Portinari ao vivo
- Clarice Tenório Barretto
- há 4 dias
- 6 min de leitura
Crítica do dia 10 de dezembro de 2025, por Márcio Boaro, do site osquelutam.com.br.
A frase dita por Adriano Diogo ao fim do espetáculo da Cia. Ensaio Aberto – “parece Portinari ao vivo” – vai além do elogio feliz: é uma chave de leitura. Há, em cena, uma potência plástica e humana que transforma o poema de João Cabral em mural vivo, com corpos que carregam a aridez, o peso histórico e a dignidade ferida de quem sobrevive sob a sombra da “morte severina”.

A montagem parte da jornada do retirante, como no quadro de Portinari, mas recusa o regionalismo. Sua força está em universalizar a luta contra a morte social. A “morte severina” já não habita apenas as paisagens brasileiras; hoje se espalha por todas as serras magras e ossudas do mundo. A encenação, assim, amplifica a fala dos marginalizados e convida a pensar os mecanismos atuais de exclusão e apagamento.
O grande acerto é recolocar o poema em seu terreno histórico sem reduzi-lo a documento. A companhia faz o caminho inverso da domesticação cultural: Severino não vira símbolo abstrato da “condição humana”, mas se reinscreve como corpo concreto, atravessado pela classe, pela fome e pela engrenagem que produz mortos antes da morte. Aqui, a beleza não consola — evidencia.
Por isso o trabalho não se contenta em “atualizar” um clássico. Ele mostra como a modernização capitalista, em suas formas recentes, refinou os modos de produzir vidas descartáveis. O retirante de 1954 encontra seus equivalentes nas novas geografias da exploração: periferias urbanas, trabalhos desregulados, migrações forçadas. A universalização, então, não é só estética — é histórica.
Que um dia este espetáculo retrate apenas um passado distante. Pois, ainda que a realidade do Nordeste e de outras zonas de conflito agrário não seja mais a de 1954, seguimos longe de um horizonte minimamente digno.
A direção de Luiz Fernando Lobo materializa essa luta através de uma composição cênica irretocável. Com cerca de 25 pessoas em cena, a montagem constrói um imaginário robusto, de beleza áspera e consciência coletiva. O trabalho de coro da Ensaio Aberto é uma aula: não vemos apenas figurantes, mas uma massa que se move em bloco, respirando a mesma poeira, funcionando ora como paisagem humana, ora como parede de resistência.
Essa atmosfera é sustentada visualmente com rigor. A cenografia de J.C. Serroni e a luz de Cesar de Ramires compõem uma força imagética rara. A iluminação não apenas clareia, ela recorta os corpos, acentuando ângulos e magrezas, aproximando a cena das cores terrosas e da geometria trágica das telas de Portinari. Ao fundo, um gigantesco ciclorama toma todo o palco, operando a passagem do tempo de forma natural e, ao mesmo tempo, estilizada, ampliando a vastidão solitária da marcha. A atuação revela trabalho consciente, sem ornamentar o sofrimento.
É a combinação de rigor estético e clareza política que nos faz perguntar: como um poema escrito entre 1954 e 1955, musicado por Chico Buarque em 1966, ainda fala tão diretamente a plateias de hoje?
Em parte, a resposta está na própria forma do texto. Narrativo e lírico, dividido entre a travessia pela morte e o presépio da vida possível, o poema se faz em redondilha maior, versos curtos e secos. João Cabral constrói uma musicalidade áspera, antissentimental, que sobrevive no tempo porque não pede piedade — pede lucidez. E essa lucidez é social. O espetáculo dialoga com as lutas contemporâneas por terra e vida digna. Ao expor o caminho do retirante como estrutura histórica, toca o mesmo nervo político que sustenta a resistência camponesa — as batalhas do MST reaparecem como eco vivo dessa travessia.
A encenação transforma a jornada/narrativa do retirante em um poderoso mecanismo de pensamento sobre a questão agrária. Em vez de apelar apenas para a emoção, a montagem tensiona a cena com dados, símbolos e interrupções, forçando o público a refletir criticamente sobre as causas estruturais da miséria no campo. A travessia de Severino deixa de ser uma simples saga pessoal para virar um diagnóstico social, onde cada encontro revela uma nova face da exploração. E o clímax, com o nascimento do menino, longe de ser um alívio religioso, é a chave de leitura: a esperança que surge ali não é ingênua, mas uma força concreta e coletiva que nasce justamente do confronto extremo com a morte. A vida, naquela cena final, se apresenta não como consolo, mas como potência de transformação.
Aqui a música entra como elemento decisivo. A direção musical de Itamar Assiere dialoga com um legado preciso. Os músicos, posicionados na boca de cena, tornam-se parte orgânica do espetáculo. Não estão escondidos no fosso ou em coxias; estão presentes, executando as músicas à beira do virtuosismo, lembrando que a narrativa é um ato construído ali, ao vivo. O encaixe das melodias naqueles versos foi “uma luta” — e essa luta virou forma, ritmo, ética.
Não por acaso, a montagem recebeu em 2022 três indicações ao Prêmio Shell (vencendo em Música) e seis ao Prêmio APTR (vencendo em Iluminação). Mas o que fica, além dos prêmios, é a sensação de que a obra não foi apenas remontada: foi reativada. Reativada com consciência do tempo histórico, com uma beleza que não suaviza a ferida — apenas a torna visível, compartilhável, incontornável.
Ao final, fica claro: “Morte e Vida Severina” segue entre nós não como memória literária, mas como denúncia em estado vivo. E a Cia. Ensaio Aberto oferece-nos uma encenação que parece pintura em movimento — Portinari ao vivo, sim — mas sobretudo povo ao vivo, história ao vivo, classe ao vivo.
Acessibilidade: Libras nas sessões de 18, 19, 20 e 21 de dezembro; 15, 16, 17 e 18 de janeiro.
TRABALHADORES DO ESPETÁCULO
Texto João Cabral de Melo Neto | Músicas Chico Buarque | Direção Geral Luiz Fernando Lobo | Direção Musical e Arranjos Itamar Assiere | Direção de Produção Tuca Moraes | Cenografia J. C. Serroni | Iluminação Cesar de Ramires | Figurino Beth Filipecki e Renaldo Machado | Programação Visual Jorge Falsfein e Marcos Apóstolo | Produção Aninha Barros
Severinos Gilberto Miranda – Severino | Anderson Primo – Irmão das Almas, Funeral de um lavrador | Ana Clara Assunção – Mulher da Janela | Bibi Dullens | Carla Muzag – Funeral de um lavrador, Cigana 3 | Eduardo Cardoso | Grégori Eckert | Iris Ferreira | José Guerra | Kyara Zenga | Leonardo Hinckel | Luciano Veneu – Irmão das Almas | Luiz Fernando Lobo – Mestre Carpina | Mariana Pompeu – Nanã, Anunciação, Cigana 2 | Mateus Pitanga | Matheus França | Mika Makino | Pedro Fernando – Irmão das Almas | Rafael Telles | Rossana Russia – Maria | Thaise Oliveira | Tomás Santa Rosa | Tuca Moraes – Cigana 1 | Victor Hugo | Victor Seixas
Músicos | Acordeon – Itamar Assiere e Matheus Queiroz | Cello – Saulo Vignoli | Percussão – Mingo Araújo | Violão e Viola – Marcílio Figueiró
Assistente de Direção Octavio Vargas e Paola de Paula | Assistentes de Produção Laura Gonna e Élida Belsi | Produção de Set Fellipe Rodrigues | Preparação Vocal Ana Calvente | Preparação Corporal Luiza Moraes e Mika Makino
Músicas Adicionais Itamar Assiere, Carlinhos Antunes, Airton Barbosa | Design de sonorização Branco Ferreira | Operação de som Branco Ferreira | Operação de luz Pedro Passini | Microfonista Ana Bittencourt
Assessoria de Imprensa Armazém Comunicação – Christina Martins | Coordenação Ciência do Novo Público Clarice Tenório Barretto | Ciência do Novo Público Andreza Dias, Gilberto Miranda, Grégory Eckert, Júlia Freiman, Mateus Pitanga, Maura Santiago e Thaise Oliveira | Fotos e Imagens de Divulgação Thiago Gouveia | Fotos do Programa Thiago Gouveia, Renam Brandão e Leon Diniz | Vídeos Maria Flor Brazil, Claudio Tammela – Banda Filmes | Ilustrações Carybé | Gerente de Projeto Gráfico Priscilla Fernandes | Produção Gráfica Marcello Pignataro
Assistente de cenografia Débora Ferreira e Júlia de Ohana | Cenotécnico Wagner de Almeida | Maquinistas Benilson Alves, Douglas Vendramini,Claudio Boi | Pintura e texturização Beatriz Leandro, Débora Ferreira, Mel Luz César Couto, Niki Cavalcanti e Byby Marsan | Técnicos Valdeir Baiano e Pedro Passini
Equipe Ensaio Aberto//Armazém da Utopia
Diretor Artístico Luiz Fernando Lobo | Diretora Executiva Tuca Moraes | Conselheira Artística Iná Camargo Costa | Assessora da Diretoria Kathryn Valdrighi e Victória Alves | Assessora Direção Executiva Talita Cairrão | Produtora Aninha Barros | Coordenador operacional João Queiroz | Analista Operacional Priscila Pena Di Franco | Administrativo Financeiro Ione Melo | Assistente Executiva Thaiana Telles | Laboratório de Corpo Luiza Moraes e Mika Makino | Laboratório de Figurinos Joana Pacheco e Ana Clara Assunção | Laboratório de Cenografia e Objetos de Cena JC Serroni e Júlia de Ohana | Laboratório de Iluminação Cesar de Ramires | Laboratório de Memória Ciência do Novo Público | Técnico de palco Valdeir Baiano e Pedro Passini | Técnico AU Alex Araujo e Leonne dos Santos
Grupos de Trabalho Morte e Vida Severina
GT Iluminação Eduardo Cardoso e Leonardo Hinckel | GT Cenografia Júlia de Ohana e Thaise Oliveira | GT Figurino Joana Pacheco e Ana Clara Assunção | GT Objetos de cena Mariana Pompeu e Grégori Eckert | GT Maquiagem Ana Clara Assunção
Agradecimentos
Ministério da Cultura e Funarte
Abramus, Copyrights, Marola Edições Musicais e Beth Kbelo
Chico Buarque de Hollanda, herdeiros do João Cabral de Melo Neto e herdeiros do Carybé por nos permitirem contar e cantar essa história severina.
Esse espetáculo estreou em 29 de março de 2025 no Teatro Vianinha – Armazém da Utopia.